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No Brasil, fala-se o português... e em Portugal também
Geral 07/09/2025 07:51 Fonte: Publico Por: Publico Relevância: 50

No Brasil, fala-se o português... e em Portugal também

Não há desculpas para a xenofobia. Aproximar-me de pessoas de culturas diferentes fez com que eu pudesse mudar e, quero crer, tornar-me uma pessoa melhor.

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Ahmad é sírio. Visito-o regularmente na sua pet shop. É ali que compro a comida para o Nino, meu cãozinho. Ahmad estava muito feliz com a sua viagem à Síria desde que aqui chegou, nesta cidade de São Paulo, fugido da guerra. Ele é veterinário, mas veio, como me disse em um português carregado de um delicioso sotaque que confunde gêneros e plurais, "com uma mão na frente e outra atrás". Ahmad é um jovem batalhador com olhos vivos e expressivos e um sorriso largo que o ilumina. Vai ficar na Síria 40 dias e explica-me que preparou toda uma série de ações na loja para que eu não precise ir a qualquer outro concorrente. É impossível não sair de bem com a vida depois de conversar com Ahmad.

Quando cheguei a Lisboa para o pós-doutoramento, em 2017, fazia mais frio do que previra. O dinheiro da bolsa era curto e eu tinha deixado dois bons casacos de frio no Brasil e um amigo ficou de mos enviar. Mas enquanto eles não chegavam, um vizinho que, na época, eu ainda pouco conhecia, percebeu a situação e, sem que eu lho pedisse, ofereceu-me bondosamente um pesado casaco que guardo até hoje com carinho. António tornou-se um dos mais queridos amigos, daqueles que nos fazem bem simplesmente ao vê-lo, e com ele tenho aprendido a prática da gentileza e algo desse humor tão português que nunca canso de admirar. Não consigo convencê-lo a vir visitar-me cá nos trópicos e, apesar de eu saber disso, tampouco me canso de convidá-lo. Vai que...

Ahmad e António são duas pessoas muito diferentes, trazendo formações culturais e narrativas que pouco têm a ver entre si. Mas têm. São duas grandes almas. O rapaz do pet shop (pet shop, preciso dizer, é uma palavra horrorosa, não é?) e um dos meus mais queridos amigos ensinam-me coisas sobre a vida que não estão nos livros e que me fazem bem. Eu preciso deles para ser uma versão melhor de mim. E isso é a tônica do que eu gostaria de dizer aos meus simpáticos leitores: o outro nos pode ensinar a sermos pessoas melhores. Basta estarmos dispostos a isso. Querermos aprender com os outros significa também aceitarmos que não sabemos tudo.

Os sírios, os portugueses, os brasileiros... para além dos rótulos, há pessoas. Pessoas a falar português, a construir todos os dias essa língua plural. Pessoas que carregam suas culturas e seu modo de estar no mundo, mas que são, acima de tudo, indivíduos. Em todos os coletivos há boas e más pessoas; mais ainda, há pessoas que fazem coisas boas e más, o que não é sempre a mesma coisa. Como é difícil enxergar pessoas na sua cultura, sim, mas também na sua individualidade!

Aqui fica um alerta especialmente para os brasileiros. O Brasil tem, ao longo dos séculos, convivido com as mais variadas formas de violência e exploração. O exercício da empatia não é fácil para a maioria de nós. Sobreviver, ao longo da nossa história, muitas vezes exigiu o silêncio, a ironia, o deboche, a resiliência. Como tudo, essas características podem ser boas ou ruins. Depende do uso. Por vezes, não sabemos usá-las, de modo especial, quando estamos em outras culturas. Um senhor brasileiro, dono de um restaurante em Lisboa, queixava-se de que seus piores clientes são brasileiros: "Querem sempre levar vantagens, mesmo vantagens injustas. Prefiro os portugueses, compreendem melhor a minha situação de quem está começando", dizia. Claro, nem todos os brasileiros somos assim, aproveitadores, e nem todos os portugueses são solidários. Os rótulos são um erro...

Apenas há de se ver a história que pode estar por detrás das ações, olhá-las com mente aberta e aprender com elas. E, sim, não é demais dizer que, neste momento, o fluxo migratório faz com que grande número de brasileiros esteja vivendo numa casa que não é deles, mas que deles pode vir a se tornar. Como diria Martinho da Vila: "vai devagar, vai devagarinho". Uma grande parcela dos que imigraram o fez porque sentiam que a vida que tinham na sua terra de origem poderia ser melhor. Então, permitamo-nos melhorar!

Cresci ouvindo piadas de português. Minha infância acompanhava o destino vivido pelas últimas grandes levas de portugueses emigrados ao Brasil. As piadas de português ofendiam, porque estereotipavam um tipo de pessoa que não correspondia a toda a realidade, muito menos à minha realidade. Eram descritos como pessoas sujas, ignorantes e sem criatividade. Mas, minha mãe, portuguesa, lidava com isso muito melhor do que eu, que sempre fui um híbrido entre dois países e dois continentes. Ser filho de imigrante é uma experiência toda à parte. De qualquer modo, foi um erro que essas piadas existissem. A grosseria não é boa semente.

Hoje, Portugal inverte o sentido e repete esse mesmo erro, que pena! Mas não são todos... a frase está mal escrita, permitam-me corrigir: Hoje, alguns em Portugal invertem o sentido e repetem esse mesmo erro, que pena! Agora sim! Mas há muitos brasileiros e portugueses dispostos a aprender sobre o outro que não conhecem. Até sobre o seu modo diferente de falar a nossa língua, sobre outras formas de nos relacionarmos com o mundo.

Em português escreveu Machado de Assis e não há, desculpem-me quem pensar de modo contrário, quem tenha escrito prosa melhor na nossa língua. Dele aprendi, em Dom Casmurro, que "não há nada mais difícil de saber que aquilo que não queremos saber". O segredo não está tanto no outro, como em nós. O nosso querer saber do outro, desejar entendê-lo na sua alteridade é o primeiro passo para aprender a respeitá-lo. Enfrentarmos a tendência de "perco o amigo, mas não perco a piada" e ver o outro, que é diferente de quem somos, como aquele que está em sua casa, onde queremos construir a nossa, justamente porque achamos que aqui podemos ser mais felizes. Entender isso é essencial porque, como bem diz o nosso Machadão, "os homens não perdoam aos que não entendem".

Não há desculpas para a xenofobia, mas isso não significa que ser estrangeiro faça dessa pessoa sempre certa. No meu caso, aproximar-me de pessoas de culturas diferentes, como Ahmad e António, fez com que eu pudesse mudar e, gosto de crer, tornar-me alguém melhor. Os brasileiros que emigram deixaram o Brasil e precisam aprender a confiar que há outros modos de viver e serem felizes. Alguns portugueses, ao terem de conviver com pessoas de outras culturas, mesmo que construídas na mesma língua, também precisam confiar que há novas e boas aprendizagens a construir. Deixo um último pensamento do Machado de Assis: "A desconfiança é um ácido que corrói a alma e a torna menor". Agradeço ao Ahmad e ao António que não desconfiaram demasiadamente de mim! São eles grandes almas!

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