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Como a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra impulsionou o fim do Estado do Novo há 80 anos
Geral 29/10/2025 11:14 Relevância: 20

Como a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra impulsionou o fim do Estado do Novo há 80 anos

BRASÍLIA - O Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, então capital federal, amanheceu cercado por tropas insurgentes em 29 de outubro de 1945. A guarda pessoal do presidente Getúlio Vargas havia sido substituída por uma unidade que ocupava os jardins da residência oficial da Presidência da República. Tanques de guerra apontavam para o prédio.
À frente do golpe em andamento estavam generais que haviam sido ministros do governo Vargas, marcado por autoritarismo e repressão, mas também por avanços nas leis trabalhistas. Vargas deixaria o cargo no mesmo dia. Às 21 horas, o general Cordeiro de Farias entregou a ele, no Guanabara, rascunho do documento de renúncia.
Vargas pediu ao seu secretário para datilografar a carta final. "Preferia que vocês me atacassem, para que eu me defendesse, mas já que se trata de um golpe branco, não serei eu o elemento perturbador", afirmou o ditador, que assinou o documento em seguida e pediu 48 horas para deixar a residência oficial. Mas os generais queriam acelerar a saída.
O Guanabara amanheceu sem luz, água e gás em 29 de outubro de 1945. "Isso está mais parecido com uma ação de despejo que um golpe de Estado", ironizou Vargas. Em 1º de novembro, um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) o levaria para a sua fazenda em São Borja (RS), onde cumpriria um período de autoexílio.
Vargas foi o presidente brasileiro que mais tempo ficou no cargo. Ele assumiu a Presidência da República pela primeira vez após a Revolução de 1930, que depôs Washington Luís e rompeu o ciclo de alternância política entre as oligarquias mineira e cafeeira - a chamada política do café-com-leite.
Com Vargas à frente dele, o Governo Provisório da Revolução durou até 1934. Com a alegação de uma "ameaça comunista", Vargas cancelou a eleição presidencial de 1937, dissolveu o Congresso e anulou a Constituição de 1934. Era o início do Estado Novo, encerrado há 80 anos, em 1945, quando Vargas foi deposto por militares.
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), José Linhares, substituiu Vargas. A Constituição de 1937, que estava em vigor, não previa a figura do vice-presidente. Linhares ficou três meses no cargo até passar o poder ao presidente eleito em 2 de dezembro de 1945, o general Eurico Gaspar Dutra. Era a retomada da democracia.
Nomeação de irmão de Vargas foi estopim para golpe
O estopim para o primeiro golpe de Estado no Brasil planejado em conjunto por Exército, Marinha e Aeronáutica foi a nomeação de um irmão de Getúlio, Benjamim Vargas, para chefe da polícia do Rio de Janeiro. Militares viram a medida como uma preparação de Getúlio Vargas para um novo autogolpe.
Mas o regime já estava para cair, com o desejo de liberdade que os ventos do pós-guerra sopravam, de acordo com diversos pesquisadores, como Antônio José Barbosa, professor aposentado do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) e um dos maiores estudiosos da Era Vargas.
"A ditadura do Estado Novo, de viés fascista, ficou insustentável com a derrota nazifascista na Segunda Guerra Mundial. Havia crescente movimento interno pela democracia, especialmente a partir de fevereiro de 1945", observa Antônio Barbosa.
Iniciada em 1939, a Segunda Guerra Mundial terminou com a rendição incondicional do Japão em 2 de setembro de 1945, com vitória dos Aliados sobre o Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Caracterizado pelo autoritarismo, censura e centralização do poder, o regime de Vargas flertou com o nazifascismo. Ficou neutro na Segunda Guerra até 1941.
Após muita negociação, Brasil e Estados Unidos assinaram um acordo pelo qual o governo norte-americano se comprometeu a financiar a construção de uma grande usina siderúrgica brasileira, a Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda (RJ), em troca da permissão para a instalação de bases militares e aeroportos nas regiões norte, nordeste e no arquipélago de Fernando de Noronha.
Logo após, Adolf Hitler autorizou a marinha alemã a estender a guerra submarina aos navios mercantes de bandeira brasileira, no que foi seguida pela marinha italiana, pondo fim de fato à neutralidade brasileira. Mas, apenas após sete meses destes ataques e pressão popular para uma reação, foi que Vargas declarou guerra à Alemanha nazista e à Itália fascista em 22 de agosto de 1941.
Mas o Brasil só enviou militares ao combate em julho de 1944, para combater na Itália, onde lutaram desde setembro do mesmo ano até o fim do conflito na Europa, em 8 de maio de 1945. Ao todo, a Força Expedicionária Brasileira (FEB) mobilizou 200 mil homens. EUA e Reino Unido convidaram o Brasil para participar da ocupação da Áustria mas, o comando da FEB recusou tal convite.
Relações com Hitler, Mussolini e integralistas
Antes do rompimento das relações diplomáticas com as nações do Eixo, o governo de Vargas mantinha boas relações comerciais com a Alemanha e a Itália. Em 1936, o Brasil firmou acordo para compra de submarinos italianos, que seriam pagos com algodão e outros produtos brasileiros. O Brasil também importava armamentos da Alemanha nazista.
Entre 1933 e 1938, a Alemanha nazista era o principal mercado para o algodão brasileiro, e seu segundo maior importador de café e cacau brasileiro. O rápido aumento do comércio civil e militar entre o Brasil e a Alemanha de Hitler chamou a atenção de diplomatas dos Estados Unidos, que questionavam o alinhamento internacional de Vargas.
Em 1939, à véspera do início da Segunda Guerra, Edda Mussolini, filha mais velha de Benito Mussolini, líder fascista da Itália, foi recebida com honrarias por diversas autoridades brasileiras. Ela inclusive foi estrela de um baile no Palácio Guanabara. Edda era uma espécie de embaixadora cultural do fascismo.
Diversos pesquisadores apontam semelhanças entre as ditaduras de Vargas, Mussolini e Hitler. O nome Estado Novo, inclusive, foi tirado de outra ditadura europeia da época, instituída por António de Oliveira Salazar em Portugal, país que se manteve neutro durante a Segunda Guerra.
Assim como o fascismo europeu, o Estado Novo desprezava os partidos políticos e controlava a imprensa e a educação. Criou um órgão para censurar os jornais e produzir peças de propaganda em prol do governo, tentando transformar o ditador em um mito, como o "pai dos pobres".
"Desde a chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, a tendência a formas antidemocráticas de governo já estavam dadas, mas isso atinge a sua dimensão máxima em novembro de 1937, quando ele dá um golpe de Estado instituindo a ditadura do Estado Novo", diz Antônio José Barbosa.
"Antes, porém, é importante lembrar que o Brasil, como de resto, o mundo ocidental, vivia uma época de polarização ideológica exacerbada entre esquerda e direita. Aqui mesmo no Brasil, em 1935, houve uma tentativa frustrada da esquerda dos comunistas de fazer uma revolução. Foi um fracasso absoluto", completa o pesquisador.
Ele lembra ainda que, em maio de 1938, os integralistas fizeram um levante armado contra o governo Vargas. Na tentativa de golpe, houve um ataque ao Palácio da Guanabara, mas foi rapidamente reprimido pelas forças governistas. Os integralistas haviam apoiado o governo Vargas no combate ao comunismo no Brasil.
O movimento de extrema-direita foi fundado em 1932 por Plínio Salgado, com o nome de Ação Integralista Brasileira (AIB). Ele foi influenciado pelos ideais e práticas fascistas, que se desenvolveram na Europa após o fim da Primeira Guerra Mundial. Seu lema é "Deus, pátria e família", e seus símbolos são a letra sigma e a saudação anauê.
Filinto Müller, o líder da polícia política de Vargas
O governo Vargas abrigava declarados simpatizantes do Eixo. O mais famoso era Filinto Müller, chefe de polícia do Distrito Federal, a polícia política do regime. Müller ganhou notoriedade internacional ao prender a judia alemã Olga Benário, mulher do líder comunista Luís Carlos Prestes.
Müller comandou a deportação de Olga para a Alemanha nazista, em 1936. Ainda quando estava presa no Brasil, descobriu que estava grávida de Prestes. Foi levada para a Barnimstrasse, prisão da Gestapo onde teve sua filha, Anita, que ficaria com ela até o fim do período de amamentação.
Olga foi executada em 23 de abril de 1942, com 34 anos, na câmara de gás com mais 199 prisioneiras, no campo de extermínio de Bernburg. Anita foi entregue à avó, Leocádia, em consequência das pressões da campanha internacional liderada pela própria Leocádia.
Já Filinto Müller, um militar do Exército Brasileiro com origem alemã, continuou comandando torturas no regime Vargas. Ele ficou à frente da polícia do então Distrito Federal de 1933 a 1942, período no qual há quem afirme que cerca de 20 mil pessoas foram presas por questões políticas.
Müller foi eleito quatro vezes senador pelo Mato Grosso, de 1947 a 1973. Entre 1969 e 1973, presidiu a Arena, partido de sustentação da ditadura militar (1964-1985). Morreu em julho do mesmo ano, no pouso de emergência de um avião da Varig no aeroporto de Orly, em Paris.
A aeronave pousou sobre uma plantação de cebolas em decorrência de um incêndio iniciado no banheiro e que chegou a invadir a cabine da aeronave. O incêndio, a fumaça e a aterrissagem forçada resultaram em 123 mortes, com 11 sobreviventes (10 tripulantes e um passageiro).
Regime impopular que precisou "coagir o povo"
Não há provas de que Vargas sabia das torturas comandadas por Müller, mas diferentes pesquisadores afirmam que elas existiram, colocando Müller também como perseguidor de judeus. Um deles, o norte-americano R.S. Rose, que morou no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Após meses examinando os arquivos secretos da polícia carioca, Rose escreveu o livro "One of the Forgotten Things: Getúlio Vargas and Brazilian social control - 1930-1954" (Uma das coisas esquecidas : Getúlio Vargas e controle social no Brasil, 1930-1954), publicado no Brasil em 2001.
Segundo ele, o Estado Novo era um regime impopular que precisou "coagir o povo" para se manter, "durante o domínio de Vargas, a qualidade e quantidade de abusos contra os direitos humanos atingiram níveis sem precedentes".
"As forças policiais da nação redefiniram e em alguns casos reinventaram a tortura que já ocorria no Brasil desde os tempos coloniais. A crueldade de seus métodos foi equiparada apenas pelo fervor com que esse exemplo foi seguido pelas gerações posteriores", escreveu o norte-americano.
Getúlio Vargas governou o país por voto direto
Getúlio Vargas ainda voltou à Presidência da República, por meio do voto popular em 1950, quando o Brasil era uma democracia. Havia correntes políticas com diferentes ideologias representadas em todas as esferas. O Congresso Nacional não era composto exclusivamente por aliados de Vargas. Muitos parlamentares formavam uma oposição aos ideais do presidente.
Vargas se matou em 24 de agosto de 1954, com um tiro no peito, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. O Estado Novo foi considerado como um precursor da ditadura militar no Brasil, que teve início com o golpe de 1964, apesar de existirem várias diferenças entre os dois regimes.
"Da mesma forma que a Argentina tem uma dificuldade muito grande de se livrar do fantasma de Juan Domingo Perón, do peronismo, no Brasil, temos dificuldade de nos afastarmos de Vargas e principalmente no passado mais recente no regime autoritário que durou 20 anos, a partir de 1964", pondera o pesquisador Antônio José Barbosa.
'Ditador singular', 'progressista', 'humanitário'
A historiografia taxou Vargas como um "líder populista", devido à defesa de pautas que representavam, a princípio, os interesses das classes trabalhadoras. Mas historiadores dizem não ser possível classificá-lo como um político de direita ou de esquerda. Para muito, ele criou um movimento próprio, o "varguismo".
Vargas deixou admiradores até entre defensores da democracia. Um deles, Tancredo Neves, que foi ministro da Justiça de Vargas de 1953 a 1954 e viria a ser presidente pelo voto indireto de um colégio eleitoral em 1985. Tancredo minimizou o fato de Vargas ser um ditador.
"Ele se esforçou para se projetar na história como um ditador singular, porque foi um ditador progressista, um ditador humanitário. Em que pese uma ou outra acusação de violência, o povo não aceita o Getúlio como um ditador violento", escreveu o mineiro no livro "Tancredo Fala de Getúlio".
Ele e tantos outros políticos destacaram que a era Vargas possibilitou a captação de recursos para o avanço da industrialização no Brasil, e para a criação de instituições que levaram a esse processo, como a Companhia Siderúrgica Nacional e a Companhia Vale do Rio Doce.
Vargas deu os primeiros passos para a criação da indústria aeronáutica brasileira. Criou a Fábrica Nacional de Motores (FNM), inicialmente planejada para ser fábrica de aviões, e que posteriormente produziu tratores e o caminhão FNM.
Vargas criou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e a Justiça do Trabalho. Os trabalhadores brasileiros ganharam direito, com o estabelecimento de um salário mínimo e estabilidade no emprego após dez anos de serviço.
Ao mesmo tempo que conquistou a simpatia dos trabalhadores, Vargas agradou os empresários, criando leis favoráveis a eles e infraestrutura para o crescimento da indústria, com uma série de rodovias e outras obras estruturais.
"Para a direita brasileira de hoje, o Getúlio Vargas que permanece é o ditador protofascista do Estado Novo. Mas, para a esquerda, o Getúlio Vargas que prevalece é o da CLT em plena ditadura, o nacionalista dos anos 1950 e que vai ter na Petrobras o seu exemplo mais evidente", conclui o pesquisador Antônio Barbosa.

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